O mundo está cada dia mais violento. Longe de ser uma constatação leviana do quotidiano, diante dos noticiários sensacionalistas que buscam audiência por meio da espetacularização da tragédia, o mundo está, de fato, mais violento. Segundo dados do Uppsala Conflict Data Program (UCDP), projeto sueco referência na pesquisa e consolidação de dados sobre conflitos, eles cresceram em mais de 400% desde o início dos anos 2000. Além das guerras entre Israel e Palestina, Rússia e Ucrânia, que tomam os holofotes da mídia internacional, guerras intensas que acumulam pilhas de vítimas também assolam Burkina Faso, Somália, Sudão, Iêmen, Mianmar, Nigéria e Síria.

Ao todo, são 183 conflitos armados ao redor do mundo, que envolvem disputas territoriais, políticas e religiosas, étnicas, conflitos de poder entre facções e guerras civis que contabilizaram, somente no ano de 2022, 237 mil mortes. Em muitos deles, há violações sistemáticas dos direitos humanos, envolvendo ataques deliberados contra agrupamentos civis, sequestro de crianças, tortura e estupros em série, muitos destes atos legitimados e operacionalizados pelos seus Estados. Diante disto, muitos classificariam o cenário como o de uma calamidade em escala global, um campo coberto em óleo enquanto assistimos uma centelha cair vagarosamente para aviltar o fogo e deixar que consuma tudo ao seu redor.

A expressividade dos números coloca em xeque a atuação e efetividade da Organização das Nações Unidas, maior organização internacional, cuja gênese se lastreou justamente na nobre missão de zelar pelo equilíbrio internacional, interceder nos conflitos, erigir pontes de diálogo, unir povos e zelar pela paz e estabilidade. Acontece que, deixada de lado toda a pompa demagógica e o decoro diplomático, analisando em termos práticos, a ONU possui falhas estruturais que, por vezes, lhe tornam mais um palanque de projeção dos interesses das grandes potências do que um real órgão mediador com poderes de promoção da união cosmopolita tão prezada por Kant.

Para entender a questão, é preciso retomar as condições da sua origem. No auge da Segunda Guerra, as grandes potências que combatiam o Eixo, vendo o potencial destrutivo das guerras generalizadas e seu impacto no desenvolvimento humano, já enxergavam a necessidade de criar uma instituição que amenizasse o aparato da violência. Assim, a Carta do Atlântico, de 1941, a Conferência de Washington, de 1942 e a Conferência de Moscou, de 1943 já esboçavam os princípios que a norteariam: Promover o diálogo entre Estados-nação soberanos, operando em prol da manutenção da paz e da segurança internacional. Portanto, a ONU nasceu em 1945, após o flagelo de duas Guerras Mundiais, como uma organização mediadora que pretendia estabelecer princípios gerais de conduta e instrumentos de litígio que dessem lugar ao uso das armas para a resolução de desavenças.

Esse processo representou um importante avanço no cenário internacional. Até então, os conflitos eram definidos pela lógica de “balanças de poder”, em outras palavras, políticas de alianças entre grandes e pequenas nações, formando blocos armados que atuavam na lógica da dissuasão pela sua força potencial ou no apoio quando um de seus membros sofria agressão. Com a nova instituição, tomou lugar um “sistema de segurança coletiva”, um pacto social de caráter universalista, estabelecendo um arcabouço jurídico acima dos Estados em questão de segurança e direitos humanos, que tornava a guerra ilegítima e a submetia à avaliação da organização que, contando com adesão da quase totalidade dos países no mundo, poderia dispor dos seus recursos para mediar, pressionar por meio de sanções ou até mesmo enviar tropas para intervir no conflito. Tratava-se de um sistema de pressão que mitigaria a disposição à agressão e, no seu lugar, estimularia o debate em fóruns e grupos de trabalho coletivos em busca de soluções comuns para os problemas que assolam a humanidade.

Embora na teoria pareça crível, a sua instrumentalização prática sempre enfrentou problemas, e o primeiro deles se encontra na própria estrutura decisória da ONU. Atualmente, a grosso modo, a organização é composta por instituições especializadas, que tratam de assuntos específicos, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT); grupos de trabalho, conferências e comitês; a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança. Em tese, todos os Estados membros têm garantida igualdade jurídica, o que significa que, independentemente de sua densidade populacional, produção de riqueza, pujança militar ou influência política, todos possuem o mesmo poder de voto e direito à voz. Na Assembleia, que trata de temas gerais como desenvolvimento econômico, combate à fome e medidas para a defesa universal dos direitos humanos, isto pode até ser verídico, mas o problema está no Conselho de Segurança, onde o verdadeiro poder decisório está alojado.

Enquanto naquela todos os países têm participação ativa, neste apenas um grupo seleto tem acesso. O Conselho é composto por 10 Estados provisórios, com mandatos de 2 anos, e 5 membros permanentes, expressamente EUA, Reino Unido, Rússia, França e China, os vencedores da guerra. A problemática repousa sobre 3 pontos centrais: A avaliação das ameaças à segurança internacional é tipicamente um tema exclusivo do Conselho, e este pode tomar para si qualquer tema de seu interesse que esteja sob análise da Assembleia Geral; as decisões tomadas pelo Conselho têm caráter vinculante (obrigatório), estando o país não aderente sujeito a sanções, enquanto toda e qualquer resolução da Assembleia é de teor puramente recomendativo; e os membros permanentes do Conselho possuem poder de veto.

Em termos práticos, isto significativa uma hegemonia institucionalizada, que divide a ONU entre países de primeira e segunda ordem. Àqueles, fica reservado o poder real de emprego dos recursos da instituição somente nos conflitos e na forma conveniente aos interesses das grandes potênciais, aos demais, um proselitismo instrumental para questões tidas como de menor grau. Enquanto a todas as nações é imposta a vontade deste grupo seleto, os mesmos não partilham a condição de sujeição, pois o poder de veto virtualmente lhes concede salvo conduto para acatar tão somente o que estiver de acordo com seus interesses particulares. Em outras palavras, há uma lógica de consenso pela qual, mesmo que 14 membros do Conselho tenham votado a favor de uma resolução, a contrariedade de somente um dos permanentes é capaz de embargar o assunto. Está foi a lógica empregada pelos EUA ao vetar, 3 vezes, uma resolução do Conselho que demandaria cessar-fogo imediato no conflito entre Israel e Palestina.

Desta forma, a suposta igualdade jurídica entre os Estados se esvazia no exercício real do poder, pois as decisões mais urgentes, justamente aquelas relacionadas à guerra e ao equlíbrio do sistema, ficam restritas aos auspícios das grandes potências, e estas jamais se veem obrigadas a atender ao interesse da maioria. Assim, os temas internacionais são despidos de seu valor intrínseco e a avaliação da instituição que, em tese, deveria partir de uma visão universal da defesa incansável dos direitos humanos independente de nacionalidade, gênero ou raça, passa a ser realizada a partir da base político-ideológica restrita dos 5 permanentes – Pois nada será aprovado sem a sua anuência -, levando a pesos e medidas diferentes de acordo com quem e qual território está envolvido. Essa mesma lógica se estende à Corte Internacional de Justiça, maior órgão jurídico internacional, cujas 5 das 15 cadeiras estão reservadas à representação permanente dos 5 membros, com uma tendência de reprodução da posição política de seus governos. Some-se a isso o fato de que somente Estados podem acionar a corte, e fica evidente como as comunidades, muitas vezes perseguidas e flagelados pelos seus governos, são desqualificadas em detrimento do estadismo.

Outro ponto fundamental das fragilidades na atuação da organização surgiu após os atentados de 11 de setembro 2001. Com a eclosão da chamada “guerra ao terror”, a administração de George W. Bush assumiu a teoria da “intervenção de caráter preventivo e unilateral”, que justificaria a invasão ao Iraque em 2003. Por meio dela, os EUA aprofundaram a erosão do multilateralismo e burlaram a legitimidade do Conselho de Segurança, auto promovendo o direito de entrar em conflito com quaisquer grupos ou países que considerasse ameaças sem que fosse preciso passar pela sua aprovação. A desfaçatez estadunidense escancarou a frágil base de atuação da ONU: Uma vez que esta não opera como um governo mundial, mas a partir da cooperação de Estados reciprocamente dispostos, seu funcionamento só é possível tão somente se todos respeitarem as regras do jogo. Considerado o modo como as grandes potências comumente as desrespeitam – Sem que haja penalizações -, o próprio status de operação da ONU desestimula que os demais Estados se submetam aos seus regulamentos, pavimentando assim um caminho de auto desqualificação e enfraquecimento.

Não se pode negar alguns resultados que vingaram sob atuação da ONU. A organização teve importante papel no século passado no processo de independência das antigas colônicas, institucionalizado o princípio de “auto determinação dos povos” e fornecendo tutela aos territórios antigamente dominados para auxiliar na sua estruturação política. Além disso, internacionalizou – Embora ainda esteja longe de alcançar sua plenitude prática – a pauta dos direitos humanos, por meio da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, e permanece universal, uma vez que conta com quase 200 Estados membros e dispõe de inúmeros fóruns temáticos que seguem ativos.

Todavia, essas realizações parecem, no mínimo, aquém das inspiradoras promessas realizadas na sua fundação. Apesar dos esforços, a miséria, a fome e o analfabetismo seguem vigorando. Uma desigualdade abissal ainda separa países dos eixos Norte e Sul, preservando uma dependência estrutural que descende da exploração colonial. O racismo, a xenofobia, a misoginia e a homofobia são raízes que seguem germinando nas sociedades e provocando uma violência sistemática contra grupos minoritários. No campo internacional, conflitos afloram pelas mais variadas razões e o multilateralismo padece diante de nacionalismos que solidificam o retorno da lógica maniqueísta do “nós” contra “eles”, enquanto na ONU os Estados permanentes do Conselho de Segurança utilizam a organização como púlpito para a exacerbação dos seus interesses, enquanto as demais nações são submetidas à condição de meros objetos no tabuleiro geopolítico.

Decerto, não presenciamos uma Terceira Guerra Mundial. Conforme Dag Hammarskjold, segundo Secretário Geral da ONU disse acerca dos desafios a serem enfrentados, a organização “não foi criada para conduzir a humanidade ao paraíso, mas para garantir que ela não tombasse no inferno”, mas ele se esqueceu de que alguns estão muito mais próximos do fogo.

Foto: Christopher Hubenthal/Wikimedia Commons

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