Trump 2.0: Sob bandeira da liberdade, radicalismo exaure a democracia
- Fellipe Sena
- 31 de jan.
- 8 min de leitura
Atualizado: 5 de fev.
Melhor articulado com a sua base política, o presidente reeleito não disfarça visão de mundo mais radical, e busca contestar a ordem democrática

Após um primeiro mandato mergulhado em polêmicas e medidas controversas, e uma vitória bastante segura em 2024 (apesar de desacreditar a confiabilidade do sistema eleitoral), Donald J. Trump foi oficialmente empossado como primeiro mandatário condenado na justiça, nesta segunda-feira (20), como o 47º presidente dos Estados Unidos.
E o tom não poderia ser outro: um discurso lamurioso, que diagnostica uma sociedade decadente, abandonada à corrupção do establishment político tradicional, empobrecida, desgarrada de valores e envolta em sombras, pelo menos até então. Em meio à suposta desgraça, Trump se promove como um emissário de Deus, um messias que tem sobrevivido a provações para libertar um povo encarcerado por inimigos invisíveis, porém presentes em todos os lugares. Diante do povo americano, ele anunciou o dia de sua posse como o “Dia da Libertação”, marcando os novos rumos da maior potência mundial nos pilares da soberania, da segurança e da liberdade.
Sua visão, ainda mais radicalizada, agora que possui melhor articulação com a sua base política e experiência na Casa Branca, não tardou a pesar na caneta. Em apenas dois dias de mandato, já foram 78 revogações e ordens executivas, que explicitam o que já se supunha a partir da campanha: Trump é uma ameaça real à democracia, à ordem liberal internacional, e não está aberto ao diálogo, empenhado em construir, ao lado de seus asseclas de grupos radicais dos mais variados matizes e de seus bilionários de estimação, uma nova configuração de poder baseada na lei do mais forte.
Para começar, retirou (novamente) o país do Acordo de Paris, criado em 2015 com a adesão de mais de 190 países para reunir esforços e estabelecer metas para conter o aumento das temperaturas médias do planeta e a destruição da biosfera. Mas, não satisfeito, também orquestrou a saída da Organização Mundial da Saúde, com a qual travou embates públicos, ao minimizar os perigos da COVID-19 e defender curas milagrosas para uma pandemia que matou quase 7 milhões de pessoas no mundo.
Sua justificativa? Romper com a bolha ideológica que direciona as instituições internacionais, reconquistar a soberania e autonomia dos EUA e conquistar condições preferenciais nas relações multilaterais. Neste mesmo espírito, encerrou o Green New Deal, série de medidas que buscavam promover a transição energética no país, e anunciou novos investimentos e desregulações na exploração de gás e petróleo, além de taxações que virão sobre produtos estrangeiros, para aumentar os rendimentos do governo e melhorar o nível de vida da população às custas de outros países, não especificados.
Talvez Panamá e Canadá, a quem Trump já ameaçou diretamente, mais de uma vez, “anexar” ao seu território por meio das armas, em nome dos benevolentes interesses de Tio Sam. Mas engana-se quem acredita que a população estadunidense está segura, ao menos aqueles que não compõem o clube do perfil aristocrata, patriarcal e supremacista. Segundo pronunciou na posse, há uma “engenharia social de raça e gênero” que germinou no sistema educacional, estimulando “preferências perigosas, degradantes e imorais”, que fazem com que as crianças odeiem a nação.
Por isso, o Estado deve reconhecer apenas os gêneros masculino e feminino e, dentre seus primeiros decretos, Trump estabeleceu o encerramento dos órgãos de diversidade e inclusão do governo, obrigando as instituições que recebem fundos federais, como universidades privadas, a também encerrar seus programas de diversidade. Além disso, prédios federais foram proibidos de hastear ou apresentar qualquer simbolismo que faça referência à comunidade LGBT. Esta medida já havia sido adiantada por colossos das big techs, como X, Amazon e, mais recentemente a Meta, de Zuckerberg que, além de extinguir seus programas de diversidade, estabeleceu novas diretrizes de mediação de conteúdo que permitem associar mulheres a vadias, muçulmanos a terroristas e LGBTs a degenerados doentes.
E não há figura com autoridade que possa questionar. Afinal, trata-se de um projeto de resgate do excepcionalismo nacional, comprometido com o retorno dos valores tradicionais e com a construção de uma sociedade justa, baseada nos mantras da meritocracia e do empreendedorismo, diante dos quais qualquer mazela não passa de proselitismo vitimista. A primeira vítima, ironicamente, foi uma bispa, Mariann Edgar Budde, classificada pelo presidente como uma “radical de esquerda que o odeia, pouco convincente e pouco inteligente”, por tê-lo feito um apelo, na primeira missa em que participou após a posse, por misericórdia pelos filhos de imigrantes e por membros da comunidade LGBT, que temem pelo seu futuro.
Se a bispa foi severamente repreendida, o mesmo não se pode dizer dos mais de 1500 presos pelo ataque ao Capitólio de 6 de janeiro de 2021, que receberam o indulto presidencial. Em um notório ataque à democracia, agrediram policiais, depredaram patrimônio público e colocaram em risco a vida de congressistas, ao tentar, sob estímulo do próprio Trump, impedir que o resultado das eleições fosse respeitado e que Joe Biden assumisse a presidência.
Eles, obviamente, são vulneráveis vítimas de uma trama política obscura, que envolve os democratas, o departamento de Estado e todas as instâncias judiciais, assim como as investigações pela participação no 6 de janeiro, fraude civil (que lhe rendeu uma condenação de US$ 454 milhões) e difamação nas quais Trump se encontra, também representam uma perseguição contra os reais defensores dos interesses do povo. Por isso, a desregulação das redes, a libertação de criminosos que atentam contra as instituições democráticas e a demonização de movimentos e direitos sociais prezam pela bandeira central do trumpismo: uma liberdade de expressão torpe, parcial, que não busca garantir a todos a expressão irrestrita do pensamento, mas sim um estado homogêneo de ideias, baseado no império dos interesses dos mais fortes, que hoje buscam resgatar uma estrutura secular de privilégios que apenas recentemente passou a ser questionada.
À frente de uma das maiores potências econômicas, e a mais proeminente militarmente, Trump e seu secto de pseudo libertários apresentam, agora sem qualquer pudor, algumas das principais características do fascismo descritas por Umberto Eco.
Em primeiro lugar, está o culto ao tradicionalismo. Por meio do recurso a uma narrativa histórica fabricada, ou seja, à idealização de um passado longínquo no qual a sociedade funcionava plenamente, se forma uma teologia legitimadora do reacionarismo e da anti modernidade. Ora, se outrora, quando imperavam os valores tradicionais, havia estabilidade e progresso, são então essas novas pautas sociais as responsáveis pela decadência da nação.
Por isso, há um legítimo medo das diferenças, vistas como subversivas. Assim como no fascismo, o trumpismo enquadra causas feministas, raciais e de diversidade sexual como pensamentos perigosos, que afrontam a sociedade e corrompem as crianças. Seu projeto político almeja uma ordem que se estrutura na homogeneidade, acreditando que há uma única forma legítima de vivência, inspirada no modelo patriarcal.
Não por acaso, os sistemas educacionais no geral, mas em especial as universidades, são alvo frequente de ataques. Por se tratarem de centros de questionamento e formação crítica, representam um baluarte de resistência em potencial, que necessita ser contido e apreendido. Se Hitler promoveu uma extensa queima de livros ao subir ao poder, na dita maior democracia do mundo ocidental, Trump tenta impedir pautas de gênero nas escolas, ataca programas universitários e associa debates políticos com doutrinação.
Para proteger os cidadãos, cria-se a narrativa do herói carismático, uma figura fustigada pelas provações de desafiar o establishment, mas que é a única capaz de verdadeiramente compreender e defender os interesses populares. Aproveitando-se de uma massa frustrada, realiza promessas milagrosas, com base em operações lógicas simplistas e falaciosas, para angariar apoio a ações violentas e todas as medidas necessárias, como um ataque ao Capitólio, passando por cima das instituições e do judiciário falido para libertar o seu povo.
Tudo isto envolto em uma narrativa excludente do “nós” contra “eles, pressupondo visões de mundo e valores irreconciliáveis entre valorosos cidadãos de bem, comprometidos com a família (embora a condenação de Trump tenha sido por distorção fiscal para esconder os pagamentos realizados para silenciar uma garota de programa com a qual se envolveu durante as eleições de 2016), e grupos subversivos, comandados pelo marxismo cultural e pela ideologia de gênero, que corromperam as instituições e buscam transformar as crianças em transexuais e destruir a cultura.
Nesse afã, não há espaço para dúvidas ou questionamentos. Assim como no caso da bispa Budde, todo aquele que apresenta um mínimo grau de dissonância para com as ideias do movimento, é automaticamente reconhecido como infiltrado da oposição, um comunista radical que pretende impedir que a liberdade alcance os corações do povo.
E aos que acreditam que qualquer associação ao fascismo não passa de alarmismo da oposição, a indumentária já está sendo publicamente assumida pelos associados do novo presidente. Em reunião com uma comitiva de aliados políticos no dia anterior à posse, Steve Bannon, articulador da campanha de 2016 e ex assessor de Trump, fez uma saudação nazista enquanto elogiava os novos rumos do país. Durante a posse, Elon Musk, que assume cargo em um novo departamento do governo, de eficiência da máquina pública (embora não tenha qualquer experiência na gestão de uma cidade, quem dirá de um país), fez a mesma saudação não uma, mas duas enérgicas vezes, em tom de orgulho.
Tamanha genealogia política é conveniente àqueles grupos que, historicamente, ocuparam posições privilegiadas de monopólio das relações de poder, ou seja, homens brancos heterossexuais, localizados em países do Norte Global, que passaram a ver seus espaços disputados por mulheres, gays, negros e estrangeiros, e que agora pretendem retomar o que acreditam ser um direito de superioridade de nascença. Não por acaso, Trump instiga a ideia de um povo que perdeu sua soberania e que se encontra sitiado, mas que tem o potencial de retomar uma posição de excepcionalismo e liderança global.
Isto leva ao que pode se mostrar uma nova fase do imperialismo estadunidense, na qual o tom diplomático é deixado de lado para dar lugar à imposição pela ameaça militar, em questões geopolíticas de interesse, e por pressões econômicas que busquem o benefício quase unilateral dos EUA. O próprio movimento de desregulação das redes sociais, que foram instrumento essencial na primeira campanha de Trump à presidência, devido a mobilização massiva de fake news, escarra como esse movimento que se pretende global, dominando também a disputa digital pelas narrativas da verdade e legitimidade.
Trump se coloca como pacificador e unificador de um mundo caótico e inseguro mas, afinal, a que tipo de paz se refere? Devemos lembrar que paz não significa a total ausência de conflito, pois este representa a própria essência democrática, na contraposição de ideias e interesses, organizados dentro do jogo institucional. Logo, o sinônimo para a ausência de conflito não é a paz, mas o absolutismo. Ao lado de outros líderes de extrema direita, como Javier Milei, Jair Bolsonaro, Giorgia Meloni, Viktor Orbán e Recep Erdogan, que possuem uma visão partilhada do internacional, Trump não pretende expandir a paz, mas uma ordem lastreada na imposição pela força e pelo mutismo aos que se oporem a ele, cenário onírico idealizado pelos fascistas.
Se os primeiros dias de governo já foram suficientes para representar uma forte inflexão no governo, os próximos 4 não deverão ser menos turbulentos. Trump representa a vitória do narcisismo e da ideia de que poder e dinheiro estão acima de qualquer fronteira para atender a desejos particulares. Sua guerra é generalizada, contra aqueles que se opõem a ele, o criticam ou tentam investigá-lo. Iniciou, em 2016, e agora busca aprofundar, em um novo mandato no qual possui maioria no congresso e maior articulação com a sua base, uma nova era do comportamento político, baseada não no convencimento, mas na propagação desatinada da mentira, não no debate, mas no emprego da força e no uso do espetáculo, sem qualquer decoro, para exaltar a cóleras de seus asseclas contra os inimigos de seu governo, nomeadamente os democratas, movimentos sociais, nações livres cujos territórios e recursos interessem ao governo estadunidense, todo o poder judiciário e quaisquer minorias que, por meio do império da lei, tentem frear ataques diretos aos fundamentos da democracia liberal travestidos de “liberdade de expressão”. Em necessária atualização do lema, “Deus salve o mundo”.