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Rio Grande do Sul: uma tragédia ambiental como resultado da alienação política

A crise no sul do país exemplifica como o tema ambiental é, também, político, e como esse campo pode criar e potencializar tragédias na sociedade


Mauricio Tonetto/Secom/Frame/Mauro Nascimento/Secom
Mauricio Tonetto/Secom/Frame/Mauro Nascimento/Secom

O negacionismo tem uma vantagem natural sobre o discurso científico. Sua base operacional funciona por meio da simplicidade, o que significa explicações rápidas e de fácil absorção para um público muitas vezes desinformado sobre o assunto, que buscam dispensar a sua preocupação por meio da negação dos problemas.


Além disso, as pessoas tendem a acreditar e reforçar o que lhes promete benefícios em detrimento do ônus. Trata-se de uma tendência natural de busca da autossatisfação que, em relação à questão ambiental, nos fornece alguns instrumentos para entender o véu de ignorância que tem se impulsionado ao longo dos últimos anos. É mais fácil ao público seguir a lógica de que flexibilizar o código ambiental e substituir regiões de floresta por pastos de gado, plantações de soja e mineração vai trazer investimentos no nível local, desenvolver infraestrutura, gerar empregos e impulsionar a economia, favorecendo o nível geral de vida.


Nessa perspectiva, além do reforço a uma posição cômoda, na qual não é preciso alterar comportamentos e fazer uma população já sujeita a condições difíceis de vida aderir à economia de recursos, o discurso alarmado de pesquisadores sobre a criticidade do nível de desmatamento e mudança climática não passa disso, um exagero insensato que busca interditar o aumento do bem-estar coletivo. Afinal, o Brasil é conhecido pela sua abundância de recursos naturais, nossas florestas e rios são vastos e o país precisa se desenvolver.


Nesse cenário, é difícil levar de forma didática e desenvolver uma visão crítica acerca dos impactos da imprudência. A Terra se constitui como um sistema fechado, sem trocas de matéria com o espaço, o que significa dizer que possuímos uma porção finita de recursos não renováveis, e que seu esgotamento trará consequências inevitáveis. Dito isto, as complexas e imbricadas relações do desequilíbrio ambiental, a exemplo da forma como as florestas influenciam na regulação do regime de chuvas por meio da evapotranspiração, sua importância na absorção de carbono na atmosfera e a forma como um desequilíbrio local pode ter influência global não são matérias simples e, para o sujeito fatigado que tem como principal preocupação colocar comida na mesa e que não sente as consequências diretamente no seu dia a dia, mais soam como proselitismo fatalista.


Existe uma sedução natural no pensamento simplório, mas os interesses ocultos que os mobilizam não são em nada ingênuos. Por trás dessas palavras inspiradoras, grupos específicos de latifundiários, mineradores e industriais se beneficiam. Mas se a sua influência sobre a desmobilização da fiscalização e regulação ambiental lhes permite concentrar altas taxas de lucro enquanto avançam sobre áreas até então preservadas, quando a conta é posta em jogo, na forma de grandes tragédias, o dano é socializado justamente entre as populações mais vulneráveis.


O exemplo mais notório está no Rio Grandes do Sul, que após intensas chuvas e o recorde histórico de alta do nível do rio Guaíba, teve 446 de seus 497 municípios atingidos pelas enchentes, mais de 150 mortos, 100 desaparecidos e 600 mil desalojados. Em termos claros, o estado foi arrasado pela força das águas, e as perdas materiais, que demandarão grande esforço e tempo para a reconstrução, no máximo parcial, de famílias que perderam todo o seu patrimônio, não se compara à lástima das perdas humanas.


Em meio ao pandemônio, muitas têm sido as tentativas de apreender as percepções do conflito e isentar seus algozes de responsabilidade. O governador do estado, Eduardo Leite, afirmou que não é o momento de “procurar culpados”, mas de focar nas medidas de contingenciamento. Na mesma linha, grupos de direita, em especial ligados ao bolsonarismo, buscam desvincular a tragédia dos efeitos do desequilíbrio ambiental.

Acontece que o aumento de incidência de eventos ambientais extremos, e sua ligação direta com os impactos da ação humana, é uma percepção há muito consolidada e coletivamente apoiada pela comunidade científica internacional, e o caso do Rio Grandes do Sul já havia sido anunciado há pelo menos 10 anos.


Encomendado em 2014 pela Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Dilma, o estudo “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima” analisava as consequências do desequilíbrio ambiental no país com projeções para até 2100, justamente no sentido de fornecer material preditivo que orientasse ações governamentais de preparação das cidades para reduzir o impacto de futuros desastres. No documento, já se previa elevação do nível do mar, mortes por onda de calor, colapso de hidrelétricas, falta d’água no sudeste, piora das secas no nordeste e o aumento acentuado de mais de 15% das chuvas no Sul.


Este foi apenas um dos inúmeros alertas ignorados pela gestão pública. Em setembro de 2019, Leite, que ainda estava no início do primeiro mandato, apresentou a proposta de um novo Código Ambiental para o Rio Grande do Sul. Seu projeto acabou aprovado pela Assembleia Legislativa 75 dias depois, e alterava 480 pontos do arcabouço estadual de proteção ambiental. Sob a alcunha de “modernização do código ambiental”, a iniciativa, na verdade, alinhava-se com a fala icônica do então ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, que viria em maio de 2020, sobre “deixar passar a boiada”. Trata-se de subverter a questão ambiental, ignorar sistematicamente as evidências científicas dos seus impactos e deixar à própria sorte aqueles que forem atingidos pelas consequências.


O governo Bolsonaro como um todo foi forte opositor à importância das questões ambientais. Durante as fortes chuvas que atingiram a Bahia no final de 2021, o então presidente tirou férias em Santa Catarina e posou passeando de jet ski enquanto famílias morriam ou perdiam suas casas. Durante toda a pandemia de COVID-19, o mandatário desprezou os avisos dos órgãos especializados, tratou com desdém as vítimas e atuou contra a aquisição de vacinas pelo governo João Dória no estado de São Paulo, mas agora critica a atuação de Lula no Rio Grandes do Sul e busca exaltar as iniciativas da sua gestão.


Essas tentativas chulas de manipular as percepções evidenciam um ponto central da questão: O debate ambiental é, antes de tudo, político. Enganam-se aqueles que acreditam que tais questões são reservadas aos pesquisadores e ativistas, e que o fundamento técnico basta para direcionar as ações. A polarização do assunto no país ao longo dos últimos anos, e a forma sistemática como os estudos do tema têm sido negligenciados não deixa dúvida sobre como o jogo de interesses prevalece sobre os fatos.


Embora para a maior parte da população o espectro político seja um campo complexo, inacessível e até mesmo abjeto, a máxima de que “aqueles que não se interessam pela política terão suas vidas regidas pelos que o fazem” não pode ser negada. As pautas prioritárias, os objetivos centrais, a distribuição de recursos e a elaboração de planos para o seu logro não são questões de modo algum autônomas ou puramente técnicas, todas passam pelo crivo do jogo político, que está fundamentado na disputa dos diferentes grupos de interesse que constituem a sociedade.


O destino de somente 0,2% dos recursos do Rio Grandes do Sul para políticas públicas de adaptações climáticas, aprovado pela gestão Leite no Plano Plurianual 2024-2027 da Lei Orçamentária, somado à aprovação do “auto licenciamento”, no qual as empresas deixam de passar por avaliação técnica de impacto ambiental nos seus projetos, sem dúvida discrimina as evidências científicas em favor dos interesses de latifundiários e empresários.

Por isso um apelo demagógico da função benéfica das forças desreguladas do mercado.


Para interditar o debate, seduzir as pessoas pela esperança de melhores condições de vida, escondendo-lhes os riscos agregados e, principalmente, em quem eles incidem com maior força. Buscam, pela alienação, impedir o envolvimento coletivo no campo político, o trabalho de base na conscientização e a cobrança das massas sobre os governantes por medidas reais, e urgentes, de adaptação das cidades às mudanças climáticas, à preservação do patrimônio e da vida daqueles que já são desprovidos de muito.


Nessa sanha empresarial-fundiária-mineradora do lucro privado, o bem coletivo é retorcido pela alienação da função política – que deveria representar os interesses da maioria -, esquecendo-se de que o planeta constitui a base das atividades humanas, e que não há economia que sobreviva ao seu esgotamento. Mas até que esse ponto de calamidade máxima seja alcançado, há sempre os vulneráveis que são atingidos primeiro.

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