Pão e circo e o corpo político: como a democracia rui sob o teatro da polêmica
- Fellipe Sena
- 18 de set. de 2024
- 3 min de leitura
Cadeirada de Datena em Marçal escracha os sintomas de um processo de reformulação do ethos político que vem desestruturando os vínculos democráticos

As redes sociais de todo o país foram tomadas ao longo dos últimos dias por uma cena digna dos mais espalhafatosos programas sensacionalistas: dois políticos se enfrentando não com palavras, mas na base da cadeirada. Durante o debate eleitoral para a prefeitura de São Paulo no último domingo (15), na TV Cultura, após incessantes provocações por parte de Pablo Marçal, que desenterrou a acusação de assédio sexual contra Datena, o apresentador deixou qualquer resquício de decoro de lado e avançou contra o ainda coach com uma das cadeiras do cenário.
Embora vergonhosa, a cena está longe de ser totalmente alarmante ou surpreendente, e surge para ornar uma composição que retrata o que vem se tornando a política brasileira ao longo dos últimos anos: a degradação dos discursos, a perda da substância política, a inferiorização do interesse coletivo em detrimento do embate narcísico dos egos, em suma, uma miscelânia de imbróglios performáticos que se engrandecem no caos para ocultar sua ausência de conteúdo ou propostas, que investem no pão e circo de embates personalistas com mais afinco a disputas egocêntricas de poder que na preocupação em solucionar as mazelas da população.
O abandono da arbitragem das palavras em nome do emprego da violência física, embora represente um extremo injustificável de degradação do Estado democrático, figura somente como sintoma de um processo mais profundo e complexo que tem minado as bases do diálogo e da ingerência coletiva. Engana-se quem acredita que a democracia se estabelece sobre a ausência do conflito. Pelo contrário, a soberania popular e o governo da maioria, tradicionalmente elencados como seus princípios fundantes, denotam a lógica operativa do desacordo.

Em uma sociedade complexa como a atual, diferentes classes sociais e grupos de interesses disputam a primazia de seus projeto políticos, tentando sobrepor suas referências ideológicas e o que acreditam ser melhor para os rumos da sociedade, seja em interesses genuinamente coletivos ou puramente individuais. Todo esse processo só pode ocorrer de maneira ordenada devido o chamado rito democrático, uma série de processos institucionais e normativos que determinam e garantem o pleno funcionamento e respeito às regras do jogo, como o próprio processo eleitoral e o cumprimento de mandatos.
Ao longo dos últimos anos, todavia, um novo processo de radicalismo tem tomado o espírito coletivo da sociedade e sido impulsionado por figuras que encontram no ódio e na impugnação do medo um bastião de mobilização dos desafetos coletivos para o fortalecimento de suas bases políticas. Marçal, como o exemplo do momento, busca desviar a baixa materialidade de suas poucas propostas por meio da agitação de seus oponentes. Provocações levianas, simbolismos escrachos e malabarismos discursivos que misturam o proselitismo de coach com uma infantilidade torpe fazem da nova arena política não um debate para avaliar as ideias possivelmente mais efetivas para atender as necessidades da população, mas um quadro de atrofia intelectual e do baixo nível das novas classes políticas brasileiras.
Weber fez uma sagaz distinção entre aqueles que vivem para e da política. Os primeiros são figuras integralmente dedicadas aos ideais do bem coletivo, dedicando suas vidas aos afazeres burocráticos como forma de emprego racional dos recursos para promover o bem coletivo, verdadeiros altruístas dedicados à vida pública. Os segundos, por outro lado, enxergam a política pelos olhos da sanha pelo poder, um caminho facilitado ao benefício pessoal, em termos materiais e de influência. Marçal representa uma leva que encarna o segundo grupo de forma evidente.
Provocações sempre fizeram parte do jogo político, todavia provocações como “você não é homem para fazer isso”, a carteira de trabalho apontada na cara de Boulos e as acusações de uso de cocaína, dentre tantas outras, não constituem mero malabarismo discursivo para desestabilizar os adversários, mas a própria substância do modus operandi político, em uma era que adentramos na qual mais vale a performance que o conteúdo. Sua abordagem não é nova, mas sintomática de figuras já estabelecidas nacional e internacionalmente na burocracia pública, como Bolsonaro, Trump e Erdogan.
Nesse afã, intensificam-se os ânimos, despertam-se os instintos mais coléricos, aprofundam-se as diferenças e a cooperação em nome do bem coletivo passa a ser um valor impossível no campo da irreconciliação.
Conforme o campo político se reconfigura como teatro dedicado à polêmica, a técnica do pão e circo passa a ser associada ao próprio corpo da figura política, seu ego é o espetáculo principal e o secto que lhe segue, o público alienado que segue padecendo, assim como a democracia que rui às custas de xingamentos e cadeiradas.