O que ‘A Cor Púrpura’ tem a nos ensinar sobre sofrimento e esperança
- Fellipe Sena
- 14 de fev. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 4 de fev.
As condições estruturais de racismo e misoginia são apenas um fragmento do que o filme tem a oferecer

Lançado recentemente nos cinemas brasileiros, A Cor Púrpura, embora tenha uma campanha de marketing tímida, releva-se uma grata surpresa que o destaca dentre as produções hollywoodianas tradicionais. Com nomes aclamados na produção como Oprah Winfrey e Steven Spielberg na produção, a obra apresenta a trajetória de Celie, uma mulher negra dos inícios dos anos 1900 nos Estados Unidos, separada da irmã e dos filhos, e vendida a um marido violento pelo pai como moeda de barganha.
Embora o enredo pareça somente mais um dentre tantos dramas que abordam as incontáveis mazelas enfrentadas em decorrência do preconceito fruto da questão racial e da misoginia, aqui encontramos algo mais. A sensibilidade e a riqueza de detalhes com a qual Samuel Bazawule conduz sua direção perspicaz, acompanhada das atuações viscerais de nomes como Fantasia Barrino e Danielle Brooks, não transporta o espectador para a cena, o faz incorporá-la e absorver toda a carga de sofrimento à qual a personagem é submetida.
Ao longo da trama, acompanhamos de perto a luta de Celie pela sobreviência, agarrada à esperança de um dia rever sua irmã. A composição musical do filme, longe dos erros de produções que caem em arranjos genéricos e pouco insirados, é capaz de realçar o âmago de cada cena, dando corpo, forma e ritmo aos pensamentos, sensações e ímpetos dos personagens, correndo daqueles mais boêmios aos momentos mais íntimos, coléricos e catárticos de Celie.
Mas se engana quem, a primeiro momento, pensar que A Cor Púrpura pretende somente retratar uma história trágica. Suas situações, que quase superam a verossimilhança, estão entornadas de reflexão e existencialismo, levando-nos a questionar, a cada instante, não somente os quadros institucionalizados de violência ainda vigentes, mas nossos próprios desafios e anseios. Isto porque apesar de se valerem das condições raciais e de gênero dos Estados Unidos na primeira metade do século passado de maneira crítica, não se limitam a elas, servem como metáfora atemporal que pode ser extrapolada para diferentes locais, contextos e existências. Mas o ponto-chave está na forma como somos constantemente sacolejados pelas ambivalências afetivas de Celie com relação às pessoas mais próximas de seu círculo social, justamente as que mais lhe causam mal, e o traiçoeiro caminho que percorre não somente pela sobrevivência, mas construindo seu espaço de vivência e a forma como se enxerga na sociedade.
Neste contexto, as mensagens religiosas utilizadas não se tratam de uma incursão jesuíta messiânica cinematográfica, como as produções de Edir Macedo, mas uma metáfora para uma substância mais abrangente e profunda, uma mensagem primordial, especialmente em dias de percepções artificiais de vidas perfeitas e fórmulas fáceis de sucesso em redes sociais: A vida é dura, permeada por mazelas, sofrimentos e desilusões. Todavia, apesar das tormentas e intempéries, há sempre uma fagulha de esperança, que deve alimentar nossa persistência para que nos façamos ouvir, para que possamos dar significado à nossa existência e criar nosso lugar.
E justamente dada a dificuldade da tarefa, que por vezes parece intransponível, se faz presente a ajuda de pessoas que edifiquem nossas vidas. Celie jamais esteve totalmente sozinha. Mesmo quando sob o teto de um marido violento arranjado e mantida isolada daqueles que amava, além de se apoiar na esperança de em um dia vindouro reencontrar sua amada irmã, pôde contar com uma rede de sororidade formada por figuras que cruzaram seu caminho, algumas partilhando de semelhantes pesares, e outras que lhe serviram como exemplos de força, inspiração e sulfrágio. A força dessa construção está em nos ensinar a fugir da armadilha do espírito trovadoresco, do lobo solitário, do subconsciente de superação hollywoodiano cuja validade somente se encontra quando travada por meio de um antro de solidão. O significado da vida se dá em comunhão, e embora exalte o valor da família, A Cor Púrpura jamais a exalta de maneira cega. Pelo contrário, evidencia os cenários de abuso, violência sistemática e como uma verdadeira família é formada por aqueles que nos apoiam e respeitam, os únicos realmente merecedores de um espaço à mesa.
E acima de tudo, a obra nos ensina sobre o autovalor. Todos já se depararam com o abismo. Uma torrente de acontecimentos, pensamentos e discursos, de outros e de nosso próprio íntimo, questionando nosso real valor neste mundo, a diferença que fazemos na vida das pessoas que nos cercam e o quanto somos realmente merecedores da felicidade. Ao lado de Celie, somos levados a encruzilhadas existenciais que, implicitamente, endereçam todas estas perguntas, de modo que, à sua maneira, cada espectador pode se identificar em certo grau. E a mensagem entregue é a de que esta não será uma resposta pronta, entregue de bom grado. Embora todos sejamos valiosos à nossa própria maneira, cabe a nós enfrentar nossos demônios, desbravar nossas labutas e encontrar nossa própria cor púrpura, que nos destaque entre as flores.