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‘Meta’ alcançada: como Zuckerberg faz coro à extrema direita e ajuda a ruir a democracia

Em tempos de polarização e crescente disputa de narrativas, Facebook e Instagram cedem palco ao radicalismo e à repressão em nome da bandeira da liberdade



Reprodução/Instagram @zuck/Marcello Casal jr./Agência Brasil
Reprodução/Instagram @zuck/Marcello Casal jr./Agência Brasil

Na última terça-feira, 7, Mark Zuckerberg, CEO da Meta, se tornou mais uma figura central no tabuleiro do radicalismo político, após anunciar mudanças no sistema de moderação do Facebook, Instagram e Threads, que estão entre as principais redes sociais do mundo. Se, até então, a empresa com mais de 3 bilhões de usuários contava com o apoio de 80 veículos especializados de checagem de fatos em 26 línguas, além de um sistema automatizado de inteligência artificial que bloqueava ou alertava o público sobre possível conteúdo nocivo, a nova liberalização lasciva retrata em bom tom os novos rumos políticos da big tech.


Embora falhos e muito distantes do ideal, ao longo dos últimos anos, os esforços da Meta estabeleceram um limiar mínimo de conduta para os seus usuários, restringindo publicações relacionadas a atos de discriminação, discurso de ódio, estímulo a atitudes criminosas ou propagação de informações comprovadamente falsas. Somando-se a um coro de asseclas de movimentos radicais crescentes, Zuckerberg, no entanto, parece partilhar da ideia de que mediar a propagação desses conteúdos criou um espaço demasiado “restritivo”, e que está na hora de “voltar às origens”.

Segundo seu pronunciamento, sugere-se que o avanço de pautas sociais de inclusão, acerca de questões e grupos historicamente invisibilizados, foi longe demais, e orquestrou uma prisão do pensamento. Segundo ele, há uma monopolização de vieses políticos, que silenciam ideias destoantes, inibem a diversidade social e interditam o discurso. Por isso, está na hora de desatar as amarras.


O termo imperativo que orienta os novos horizontes é claro: liberdade. O intuito é promover um espaço neutro de expressão, sem que orientações particulares induzam o limite do tolerável. Por isso, agora, ao invés de agências especializadas, a regulação será realizada pelas chamadas “notas da comunidade”, recurso já empregado pelo X de Elon Musk, outra figura bem afeiçoada dos movimentos radicais. Nele, usuários que se inscrevem no programa têm a possibilidade de classificar as postagens da rede, denunciando conteúdos inadequados ou complementando suas informações. Caso um volume considerável de usuários concorde, um aviso pode surgir para o público em geral ou, no mais extremo, o conteúdo será removido.


Trata-se do cenário ideal para qualquer empresa, no qual toda responsabilidade é terceirizada aos seus usuários, especialmente após os anos de relação conflituosa com a justiça acerca de uso de dados, asilo para células criminosas e manipulação política, como foi o escândalo da Cambridge Analytica, que rendeu a Zuckerberg 5 horas de interrogatório diante do Congresso estadunidense em 2018. Tratando-se de temas controversos, como gênero, imigração, nacionalismo e religião, o dissenso inviabilizará medidas efetivas de punição que instiguem ódio e infrinjam a dignidade humana, sob a alcunha de “diversidade de pensamento”.


Como justificativa, Joel Kaplan, recém nomeado diretor de políticas globais da Meta, afirmou que “não é certo que as coisas possam ser ditas na TV ou no Plenário do Congresso, mas não em nossas plataformas”. Se, no primeiro momento, possa até parecer uma defesa benevolente dos direitos individuais que alicerçam a democracia, o tom logo se altera quando analisado um documento interno, ao qual o The Intercept dos EUA teve acesso, que exemplifica frases que passam a ser toleradas nas redes da empresa, como “as judias são umas vagabundas”, “os imigrantes são uma merda imunda e asquerosa”, “tenho orgulho de ser racista” e “tirem esses travecos da minha escola”, com referência a uma foto de alunos do ensino médio.


Na mesma linha, as novas diretrizes de gestão de conteúdo anunciadas descrevem que a Meta “permite conteúdo que defenda limitações de gênero em empregos militares, policiais e de ensino”, e “permite acusações de doença mental ou anormalidade baseadas em gênero ou orientação sexual, dado o discurso político e religioso sobre transgenerismo e homossexualidade”.


Kaplan se esquece, no entanto, de que as falas proferidas em espaço público estão submetidas ao julgo da lei, e que nenhum indivíduo ou empresa, na promoção de discriminação ou crime, está isenta do peso do código penal. Além disso, nenhum discurso é desprovido de potencial danoso. As palavras têm a capacidade de emular emoções, forjar identificação, assentar identidades, capitanear desafetos e formar certas percepções da realidade. Em outros termos, não se limitam ao campo das ideias, são forças motrizes que fundamentam ações com impacto real no mundo que habitamos. Após o anúncio, por exemplo, Zuckerberg não perdeu tempo em retirar os absorventes destinados a pessoas trans de banheiros masculinos nos seus escritórios, e cancelar os programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) da Meta.


Se o discurso oficial busca isenção e neutralidade, a desregulação que se propõe corrobora os interesses de grupos bastante específicos. Donald Trump, presidente reeleito dos EUA, teve um histórico bastante particular com a Meta e uma relação muito proveitosa com as redes sociais em geral. Após os ataques que instigou ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, em tentativa de impedir a posse de Joe Biden, o mandatário foi banido por tempo indefinido do Facebook e Instagram. Ao longo dos anos, foi crítico ferrenho da conduta de checagem de fatos das redes sociais, alegando estarem oprimindo as massas e distorcendo a opinião pública. Em 2023, acusou Zuckenberg de fraudar as eleições e, mais recentemente, em julho de 2024, ameaçou prender o CEO, caso reeleito.


A conduta de Trump, replicada por outros líderes e movimentos de extrema direita, não se trata de mera oposição conceitual ou rixa personalista, mas de um projeto de poder que tem sido especialmente efetivo em ruir as bases da democracia. Na conexão direta que fornecem com o público, as redes sociais se mostraram solo fértil para propagar discursos inflamados e cultivar desafetos. Sem os filtros da mídia tradicional que, por mais questionável que seja, possui parâmetros básicos de fidelidade aos fatos, tornou-se possível atingir uma grande massa sem contestação, graças a plataformas não reguladas que dão palco a líderes carismáticos com falsas promessas de soluções milagrosas, como a construção de um grande muro na fronteira, e que são impulsionadas por um exército de bots que lhes conferem credibilidade.


O próprio Trump impulsionou uma tendência, cada vez mais popular entre líderes, de mobilizar um arsenal de desinformação em seus perfis, com a intenção de induzir determinadas percepções na sociedade, ao passo que atacam e descredibilizam a mídia tradicional e a oposição, sempre enquadrados em um conluio conspiratório para enganar a população e controlar suas vidas.


Logo, sem a mediação de conteúdo, torna-se muito mais fácil propagar a ideia de que Obama não nasceu nos EUA e foi o criador do Estado Islâmico, judeus comandam o Deep State, vacinas contêm chips chineses que roubam dados bancários, imigrantes são invasores sujos que estupram as mulheres e roubam empregos, movimentos sociais são células terroristas que querem destruir a sociedade e há uma conspiração gay internacional para queimar igrejas, destruir a masculinidade e impor a ideologia de gênero.


Em meio a todo esse brado pela liberdade de expressão, há uma inversão lógica e conceitual perversa, pois aqueles que buscam o direito de expressar livremente a intolerância, alegam fazê-lo em nome da democracia. Popularmente, a democracia é conhecida como o governo do povo. Robert Dahl, cientista político estadunidense, a definiu como a junção de contestação pública e participação popular. Considerando o histórico de governos monárquicos, que concentravam o poder na nobreza ou na aristocracia, significou o avanço em permitir às massas acesso à disputa e representação política, assim como a livre expressão do pensamento e crítica ao governo e políticas vigentes.


Todavia, esses princípios basilares têm sido capturados pelos movimentos radicais de direita, na tentativa de redefinir o rito democrático como um jogo de equivalências semânticas, em que a mulher pode ser reduzida à condição de vadia, o negro à de animal e o homossexual à de doente sob o império da “opinião”, a mesma, afirmam, que essas categorias expressam quando questionam o sistema e clamam por direitos. Nessa inversão lógica, esquece-se que a democracia se assenta na promoção de garantias limitadas, cujas fronteiras são estabelecidas pela lei na medida necessária à modulação das necessidades e demandas dos diferentes grupos sociais, garantindo a todos dignidade e igualdade de condições na medida das suas necessidades e do socialmente tolerável.


Se o debate, portanto, gira acerca dos limites do discurso e como defini-los, Karl Popper, um dos filósofos mais proeminentes do século XX, já lançou algumas reflexões, a partir do chamado “paradoxo da tolerância”. Pressupõe-se, com a democracia, um amplo estado de aceitação e tolerância, de modo que seja possível a participação coletiva. Mas o que se deve, afinal, fazer com o intolerante, que odeia minorias e defende a supremacia do seu grupo? Repreendê-lo não simbolizaria um ato de intolerância, este mesmo conteste e ameaçador à democracia?


A isto Popper propõe duas respostas. Primeiro, combater o intolerante por meio do discurso, fazendo do processo lógico uma ferramenta de esclarecimento e construção crítica do coletivo. Caso falhe, é necessário recorrer à repressão, pois permitir que a intolerância germine e se propague pode somente levar a um processo gradual de deterioração do Estado democrático a partir de dentro. O verdadeiro paradoxo, portanto, está no fato de que a tolerância absoluta desemboca em intolerância desatinada.


Neste imbróglio, o movimento de Zuckerberg está longe de ser neutro. No combate à pretexta censura, ele busca criar a liberdade para silenciar. Nos espaços virtuais, prega terras sem lei para incubar proselitismos radicais com base em informações falsas que instigam o medo, para criar capilaridade política e base de apoio a medidas radicais no mundo real, que se destinarão àqueles que sempre foram o alvo da bala, a escrava do lar e o pecado da bíblia.

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