Ideal monocromático: como movimento das ‘mães beges’ prejudica a infância
- Fellipe Sena
- 25 de fev. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 31 de jan.
Movimento liderado por celebridades como Kim Kardashian reforça egocentria das mães e pune criatividade dos filhos

A influência das redes sociais sobre as sociedades modernas já não é uma novidade. Cada vez mais, as vidas privadas são expostas por meio de posts, fotos e vídeos que buscam compartilhar momentos, sensações, experiências, opiniões e pensamentos. Da mesma forma, as redes se tornaram o principal veículo de negócios e influência, ditando o que são consideradas as novas modas, tendências e estilos de vida, de modo que o “instagramável” adquire, de forma latente, uma nova posição como auror em orientar os rumos da vida coletiva.
Neste sentido, um novo movimento tem adquirido grande destaque nas mídias, as chamadas “beige moms” ou “mães beges”, uma tendência estética de manter toda a paleta de cores das roupas, brinquedos e qualquer objeto utilizado pelos filhos, desde a primeira infância, em tons neutros voltados para o bege. Popular especialmente nos Estados Unidos e Europa, a tendência tem levado as mães a reformular o guarda roupas dos filhos, descartando qualquer toque de cor ou contraste, e mesmo a pintar os brinquedos deles para assumir uma forma mais sóbria e sofisticada. Assim, as saias e camisetas com estampas chamativas são alvejadas, os super-heróis dão lugar a preenchimentos sólidos monocromáticos e os brinquedos, outrora cobertos por tons radiantes de verde, amarelo e vermelho, dão lugar ao bege, branco e cinza.
Mas afinal, qual o grande problema com o que, inicialmente, pode parecer somente mais uma dentre as tantas tendências de moda e decoração que vêm e vão? Não se trata somente da predileção pessoal sobre quais cores ficam mais harmônicas no ambiente doméstico, mas na negligência de elementos importantes à infância e ao desenvolvimento das crianças em nome de um estilo de vida que nada preza além das aparências.
Muitas vezes, as primeiras palavras e frases das crianças estão relacionadas às cores. No primário, são comuns as atividades de pintura e identificação de objetos relacionadas a elas, pois contribuem para o aprimoramento de atributos essenciais, tais como a capacidade motora e cognitiva, o raciocínio e a fala. Além disso, estão na base de toda a criatividade e servem para expressar ideias, sentimentos e características. Aqueles que se interessam por psicologia, marketing, publicidade ou mesmo cinema sabem da importância no emprego da cor para transmitir uma determinada mensagem ou sensação, isto porque as cores estão munidas de significado intangível, transmitem de maneira ornamental ou integral o que muitas vezes foge à palavra.
Tendo isso em vista, o movimento das beige moms pode ser interpretado por diferentes aspectos que explicam a sua popularização. Primeiramente, há uma questão central do ego. Em sua oba O Filtro invisível, Eli Pariser demonstra como, por meio dos algoritmos, há uma tendência nas redes sociais, com base em padrões de busca, interação e consumo, de apresentar ao usuário somente os mesmos tipos de conteúdo e ideias, reforçando tacitamente aquele pensamento. Como resultado, o instagramável estabelece uma pressão implacável em nome da estética perfeita e das novas tendências, induzindo-nos a pensar que todos ao nosso redor estão aderindo a um mesmo comportamento e que, para nos adequarmos, precisamos também fazer parte do movimento.
Os pefis passaram a ser nossos cartões de apresentação, tanto de quem somos quanto das nossas visões de mundo e das vidas ideais que buscamos alcançar – ou fazer parecer que possuímos -, tornando-se um dos principais canais de aceitação e validação. A estética se tornou o pilar existencial moderno, pois a partir do que as pessoas enxergam, e do que lhes permitimos ver, realizam seus juízos e nos estabelecemos perante o coletivo, formamo-nos indivíduos de valor ou descrédito. Para as beige moms, isto significa demonstrar uma vida ideal de aparência ornamental e harmoniosa, que percorre do trato com o corpo e a beleza até os ambientes sóbrios do lar, cujos contornos minimalistas e as cores opacas buscam demonstrar uma sofisticação resoluta.
Nesse mundo, não cabem roupas e brinquedos espalhafatosos, espalhados pelo ambiente. Elas representam o desequilíbrio de um espaço cuidadosamente arranjado que busca despertar a inveja nos outros e exaltar a própria capacidade superior de promover beleza e conforto, são o símbolo da maculação profana sobre o irreverente e sagrado espaço do lar e da família. Desta forma, a criança deixa de ser indivíduo, cujas necessidades deveriam despontar como prioridade, e passa a assumir papel acessório, como mais um ornamento cuja maior transgressão precisa ser contida a qualquer custo: chamar mais atenção do que a mãe e seu gosto zeloso impecável.
Por outro lado, há uma dimensão mercadológica envolvida. Ditar certos estilos de vida está intimamente ligado com o condicionamento mental do público à valorização de dados produtos e serviços. Não por acaso, Kim Kardashian é considerada uma das principais promotoras do movimento. No último natal, sua decoração, acompanhando do visual próprio e dos filhos, totalmente tingidos de branco, chamou a atenção do público. As fotos serviram como forma de promoção da Skims, marca de roupas da socialite com valor de mercado de 4 bilhões de dólares.
O mercado sempre se valerá de todas as estratégicas e recursos disponíveis para se capilarizar em novos campos e fidelizar um público crescente, e com as beige moms não seria diferente. Essa busca por uma renovação visual, seguindo os exemplos de grandes celebridades, movimenta todo um mercado de consumo que anda lado a lado ao de procedimentos estéticos e mundo fitness, englobando mais uma dimensão da vida que se reduz a mercadoria. Aos poucos, tem promovido uma neurastenia estética, em outras palavras, um padecimento sistemático da diversidade e da vida, que acompanha a tendência de grandes marcas, como McDonald’s, de privilegiar uma monocromia fúnebre e tornar tudo mais homogêneo, mais sofisticado, às custas da predação da infância.
As cores estão intrinsecamente ligadas à felicidade e à diversidade, elas nos remetem a um quê de sonhos que nos fornece leveza. Se pedir a alguém para que imagine um cenário belo e feliz, quase certamente a pessoa descreverá um ambiente preenchido de cor e luz. Estes são elementos essenciais em um mundo cada vez mais subtraído pela cobiça do consumo e pelo utilitarismo estético, que em sua sanha pela maximização das visualizações, vendas e lucros, castra os indivíduos de uma vivência mais genuína, leve e despretensiosa. Talvez repouse aí um ponto-chave para uma vida mais feliz: Preocupar-se menos com as tendências passageiras e julgamentos alheios, centrar-se no próprio bem-estar e prazeres e deixar um pouco mais de cor tomar conta do ambiente e de nossos pensamentos.