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Ditadura brasileira: a mancha que ainda se espalha pela parede

Período militar nunca teve fim definitivo e suas ideias ainda influenciam a política nacional


Reprodução/Correio Braziliense
Reprodução/Correio Braziliense

Há 60 anos, em 1 de abril de 1964, sob o comando do general Olympio Mourão Filho, as tropas do exército brasileiro marcharam em direção ao Rio de Janeiro, em uma tomada do poder que deporia o então presidente eleito democraticamente, João Goulart, e daria início a um período sórdido na história nacional, de 21 anos de uma ditadura civil militar marcada por extrema brutalidade, ilegalidades, perseguição, tortura e mortes a movimentos sociais e opositores políticos.


Mas afinal, decorridas quase 4 décadas do fenômeno, em que medida se pode legitimamente dá-lo como um retrato restrito ao passado? Estamos verdadeiramente vivendo uma democracia, ou apenas os retalhos debilmente justapostos ao longo de tentativas trôpegas de fornecer uma frágil malha de proteção jurídica e institucional a direitos coletivos mínimos, sobre bases instáveis de sociabilidade?


Há dois caminhos complementares para tratar a questão: por um lado, inegavelmente, a sociedade brasileira logrou avanços significativos. Pós 1985, foram restituídos direitos sociais e políticos, novas pautas foram estabelecidas na esfera pública e puderam ser apoiadas ou rebatidas sobre um anteparo de liberdade de expressão, grupos minoritários gradativa, embora ainda insuficientemente, alcançaram maior representatividade política e as instituições, no geral, assumiram um modus operandi lastreado nos princípios do Estado democrático de direito, sob as prerrogativas de transparência e prestação de contas – Embora nunca tenham alcançado plenitude, se é que algum povo um dia o conseguiu.


Por outro lado, o desfecho do período ditatorial se deu de forma inacabada, para não dizer controversa ou cinicamente mordaz. A anistia concedida ao fim do regime promoveu igualdade formal entre aqueles que usaram a máquina pública para desfigurar a sociedade e cometer as mais diversas barbaridades e quem resistiu pela força à violência governamental. Mais de 50 mil foram presos e 20 mil passaram por sessões de tortura, que variaram da utilização do pau-de-arara a sessões de choque e estupros dos mais diversos – alguns com a inserção de ratos nas vaginas das mulheres -, muitas das vezes com os filhos sendo forçados a assistir os sofrimentos desferidos contra seus pais, uma tática empregada para cortar além da carne: retalhar a alma. E incontáveis dos algozes responsáveis por perpetrar estas barbaridades não somente saíram isentos de responsabilização como assumiram a figura de referenciais homenageados.


Foi notória a fala, no plenário da câmara, durante sessão de votação pelo impeachment, em 2016, quando Bolsonaro exautou como herói nacional Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel que chefiou o DOI-codi, órgão de repressão e inteligência da ditadura, e reconhecidamente um dos principais torturadores do regime. Mais notória ainda foi a reincidência frequente de seu posicionamento e a ausência de consequências legais em exautar o regime. E aqui encontramos não um divisor de águas, mas um catalisador de uma debilidade democrática jamais superada no país.


Não se pode afirmar, em menos de 40 anos após o fim da ditadura, que o Brasil possui uma tradição democrática. Considerando os eventos recentes, como o 08/01, e os ainda abissais desafios a serem superados para que de fato se consolide um espírito amplamente democrático, a afirmação seria risível. A contenda militar é uma página que jamais foi virada na história brasileira, em função da leniência em não se tratar diretamente a questão. Como exemplo, somente 2 das 29 recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade, após sua investigação iniciada em 2011, foram cumpridas: com relação às audiências de custódia e à revogação da controversa lei de segurança nacional, que dava vazão para a criminalização de movimentos sociais. As medidas, que sugeriam a penalização dos responsáveis e a proibição de eventos em comemoração ao golpe, por exemplo, ficaram relegadas ao esquecimento.


Nesse sentido, o bolsonarismo se articulou ao longo dos últimos anos aproveitando-se do vácuo de responsabilização, que seria essencial a uma democracia sólida, estabelecendo os limites do autoritário, e minou as já débeis bases da incipiente institucionalidade democrática nacional. Por meio de seus constantes apelos saudosistas ao militarismo, somados ao discurso colérico de instigação violenta contra a oposição e à ressonante e constante frase sobre as “3 linhas da constituição”, buscou fortalecer uma visão falaciosa de revisionismo histórico para promover 1964 como uma suposta “revolução contra a ameaça vermelha do comunismo”. Com isso, mobilizou sua base em uma espiral de extremismo político, descrença e ataque às instituições, o que alimentou um movimento crescente de discursos e passeatas que clamam pelo retorno dos militares. Salpicado de chamados ufanistas – um nacionalismo glorificado cego -, sempre busca se posicionar como defensor da pátria e dos valores tradicionais, elevando as lideranças do regime militar como aurores da justiça e do desenvolvimento nacional, mas se esquece do aprofundamento das desigualdade, da inflação galopante e da supressão dos direitos políticos e controle da mídia.


Some-se a isso uma incólume retórica de esquiva de Lula que, negando-se a estabelecer um posicionamento firme sobre o assunto, insiste em classificá-lo como um livreto empoeirado do passado. Assim, o Brasil nega suas feridas, jamais tratadas, e banaliza explicitamente a responsabilização que jamais fora imputada aos algozes responsáveis por arquitetar e operar uma sistemática de opressão, perseguição e aniquilação. Especialmente quando uma minuta de golpe – com aderência das forças armadas – escancara a ainda reinante disposição à ruptura institucional, não se pode apoiar a ideia de democracia consolidade, senão por ingenuidade, ou por própria inversão discursiva dos partidários da violência, a quem interessa a ignorância histórica e o obscurantismo.


As forças armadas jamais devem ser vistas como poder moderador. Sua tarefa restringe-se à proteção da ordem e das fronteiras nacionais, sem que com isso adquiram precedente político. Fazê-lo significa conceder à imposição pela força a legitimidade falsamente institucional de despir mais uma vez do poder aqueles democraticamente eleitos e fazer do Estado um governo sobre vozes silenciadas. Sobre o golpismo, negligenciar suas disposições expressas significa naturalizá-lo e, silenciosamente, permitir que se dissemine e ganhe força, minando as ainda frágeis bases democráticas brasileiras.


Assim, a ditadura segue como um bolor em um velho quadro de família na parede. No primeiro momento, pode parecer inofensivo, mas à medida que é deixado de lado, como um incômodo inofensivo, começa a se ramificar e ganhar capilaridade. A força de uma ideia, por mais falsas que sejam suas premissas, tem a mesma extensão que o número de adeptos que seja capaz de convencer, e a história comprova que os loucos, inicialmente ruidosos isolados, podem fazer suas vozes ecoarem por toda uma nação. Até quando ouviremos calados?

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