Agressão no metrô: reflexos da institucionalização da homofobia na corporação policial
- Fellipe Sena
- 14 de abr. de 2024
- 6 min de leitura
O despreparo das forças policiais para lidar com a comunidade LGBT+ reflete um preconceito estrutural muito mais amplo na sociedade brasileira

Ao longo dos últimos dias, viralizaram nas redes sociais e portais de notícias as imagens da agressão sofrida por Tauane de Mello Queiroz, de 26 anos, no metrô de São Paulo. Sentada no chão da plataforma, a jovem, lésbica e vestindo um shorts com as cores do arco-íris, foi abordada por um policial militar que, puxando-a pela camisa e lhe desferindo um agressivo tapa no rosto, vociferou que ela “iria apanhar como homem”. A abordagem, súbita e dotada de uma truculência gratuita, não é novidade para os membros da comunidade LGBT+ no país, e retoma um debate profundo e urgente: A inaptidão das forças policiais para lidar com os grupos minoritários.
O modus operandi das polícias brasileiras tem notoriedade de longa data, pelo emprego desmedido da violência e do autoritarismo, especialmente no que tange a tratativa com as parcelas mais pobres da população. Segundo dados da ONU, que enviou uma comitiva de especialistas em novembro de 2023 para avaliar a atuação policial no país, enquanto nos Estados Unidos, que têm um grave problema de violência policial, cerca de 1.200 pessoas são mortas por ano em decorrência da ação dos agentes do Estado, no mesmo período, a polícia brasileira mata mais de 6.000. Isto se dá devido a um ambiente institucional de falta de capacitação adequada para lidar com a população civil, abuso de poder e ausência de mecanismos de investigação e punição dos algozes.
Tratando-se da questão LGBT, o episódio dos últimos dias não representa um caso isolado, mas somente um dentre inúmeros exemplos que exacerbam uma sistemática de atuação, uma cultura de preconceito e discriminação que fundamenta a própria estrutura da corporação e que não deixa impunes nem mesmo os seus membros. Um caso ilustrativo ocorreu em 2019, quando o policial militar Leandro Prior teve fotos do seu pedido de noivado com o então namorado circulando em diversos grupos policiais, de forma vexatória, e uma investigação foi aberta pelos seus superiores, por estar fardado na ocasião (situação de alarmismo que dificilmente ocorreria caso o casal fosse heterossexual).
Historicamente, a polícia brasileira foi concebida para as elites, dedicada à apuração de crimes patrimoniais e avessa às necessidades de grupos periféricos. Isto se consolidou em profissionais da segurança pública que não possuem, na sua formação, orientação adequada para lidar, de maneira respeitosa e em concordância com os termos da lei, com a diversidade presente na sociedade. Em geral, acreditam que por meio da farda personificam a lei e a ordem, exercendo a função de acusadores, juízes e executores, sem que haja abertura a questionamentos ou à defesa de direitos fundamentais no tocante à dignidade e integridade dos indivíduos. Em outras palavras, assim como visto no caso do metrô, a polícia é orientada por visões preconceituosas e, sendo ela a representação do Estado na manutenção da ordem, a população se vê impotente e acoada à impunidade.
Ao longo das últimas décadas, esforços coletivos de grupos militantes, coligações políticas e avanços nos estudos acadêmicos têm alcançado progressos significativos na formação de um arcabouço institucional de proteção. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacioanos à Saúde (CID), o que permitiu substituir uma visão medicalizada da pluralidade sexual como patologia e enxergá-la como identidade constituinte da natureza huamana. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu no Brasil a união entre casais do mesmo sexo como entidade familiar, atribuindo, perante os olhos do Estado, status de igualdade entre eles e casais heteronormativos. Em 2015, o tribunal reconheceu a adoção por parte de casais homoafetivos, garantindo-lhes os mesmos direitos de casais heterossexuais e, no ano seguinte, por meio do decreto 8.727, promulgou o reconhecimento da identidade de gênero e uso do nome social por travestis e transexuais. A decisão mais recente do tribunal sobre o assunto, em 2019, permitiu enquadrar atos de discriminação e violência contra a comunidade LGBT como crime de racismo, o que, embora não enderece a questão no seu enquadramento ideal, instaurou um aparato legal de proteção à comunidade que efetivamente criminaliza a homofobia. Todos esses dispositivos, no entanto, são palco de contínuo litígio político para serem rescindidos, e parecem limitados a uma retórica jurídica com pouca efetividade material, uma vez que os casos como o de Tauane seguem recorrentes em denúncias nas redes sociais e jornais.
Se analisarmos em perspectiva histórica, as condutas sexuais plurais sempre estiveram presentes no curso da humanidade – seus primeiros registros datam de comunidades hominídeas antigas – e sempre foram alvo de fervorosas disputas. Isto porque a sexualidade é um campo totalmente envolto em subjetividade, percorre os campos da psiquê, da formação da personalidade e está intimamente ligado às dimensões da alteridade e democracia. Por isso, sua supressão ou usufro influi diretamente sobre as concepções de mundo e condutas do sujeito. Na Idade Média, por exemplo, na ausência de qualquer forma de direito internacional ou noção de soberania, além das relações de suserania e vassalagem, o ponto preponderante para a sobrevivência estava na força, e isso se expressava em população e exércitos. Por esta razão, o sexo reprodutivo era fundamental para permitir o preenchimento dos postos de guerra.
Mais tarde, com o advento do capitalismo e sua projeção global, Foucault, em sua obra “História da sexualidade”, revela como um controle compulsório sobre os comportamentos íntimos era estratégico à lógica produtiva, pois indivíduos disciplinados deixariam de se dedicar aos prazeres e voltariam suas atenções ao trabalho. Nessa genealogia, o sexo se tornou um “dispositivo”, um objeto de constante disputa ao redor do qual se projetam leis, discursos, arquiteturas e valores, o objetivo e o subjetivo para que se estabeleça o controle sobre os corpos. Sendo assim, se Marx e Engels, no manifesto comunista, afirmaram que “a história da humanidade é a história da luta de classes”, fazendo alusão à contínua disputa política entre os segmentos da sociedade por dominação e poder, digo que a história da humanidade foi, mais especificamente, a história dos controles compulsórios do tesão.
Resgato essas percepções por uma razão pedagógica e dialética: Embora possa para muitos parecer dessa forma, o sexo não é banal, e nunca esteve livre de relações de poder que buscassem moldá-lo e utilizá-lo para determinados fins. E engana-se quem, levianamente, acredita que as políticas normativas e persecutórias influem somente sobre a comunidade LGBT. Quando perseguida, isso instaura um campo referencial que estabelece as fronteiras sobre o sagrado e o profano, o natural e a perversão, o que também, subjetiva e objetivamente, influencia os comportamentos da sociedade como um todo. Disto surgem fenômenos muito conhecidos, como a masculinidade tóxica e performática que, no medo de ser questionada e não atender a essas grandes expectativas que se formam do masculino, precisa continuamente se impor.
Mas se as condutas policiais se dão de maneira tão estruturalmente preconceituosa na sociedade brasileira, isto só é possível em detrimento de uma condição estrutural mais ampla da sociedade, conivente com tal comportamento. Isto porque, sendo diametralmente oposta ao pensamento do coletivo, a conduta policial jamais conseguiria se projetar tão aberta e sistematicamente preconceituosa quanto a vemos. Isso é comprovado pela pesquisa da PoderData realizada em janeiro de 2024, que constata que 70% da população brasileira reconhece que há homofobia no país, uma taxa que subiu 7 pontos percentuais em relação a 2022.
Essa homofobia mais geral também se expressa nos dados do Grupo Gay da Bahia, mais antiga organização não governamental LGBT da América Latina, que vem mapeando e denunciando esse tipo de violência no país desde a década de 1970. Segundo o último relatório, o Brasil, mesmo com os dispositivos jurídicos citados, segue liderando o ranking de violência global contra a comunidade, com 257 mortes violentas de LGBTs registradas em 2023. Primeiramente, o número possui uma subnotificação significativa, visto que não há levantamentos oficiais e esses provavelmente enfrentariam o mesmo problema, considerando que o preconceito da corporação impede até mesmo a tipificação dos crimes de homofobia – Não é raro que sejam registrados como crimes comuns de violência -, em segundo lugar, demonstram um particular sadismo. Grande parte desses crimes envolve tortura, asfixia, esquartejamento e desfiguração, dentre outros.
Esses elementos revelam como a violência policial, apesar de um grande problema que precisa ser reconhecido e tratado com urgência, é um efeito somático de uma cultura de discriminação que está estruturalmente entranhada na população brasileira. E os últimos anos, permeados pela poralização política e pelos ataques diretos do Bolsonarismo à comunidade LGBT, forneceram um discurso de ódio que tem ganhado crescente capilaridade e que muniu de legitimidade um pensamento conservador que vê as sexualidades plurais como ameaça à sociedade. Não à toa, a corporação policial tem grande número de adeptos ao líder político.
Essas reflexões não esgotam ou trazem soluções para o assunto, elas têm função de denúncia e provocação, para que reflitamos sobre os rumos da nossa democracia em disputa. Uma sociedade próspera não deve ser calcada na violência arbitrária, na perseguição e exclusão. A polícia, como força estabilizadora do Estado, precisa preservar a integridade da população e agir em concomitância com a lei, mas esta será uma tarefa muito mais árdua se, ao mesmo tempo, não trabalharmos em um âmbito mais amplo do jogo político e da cultura, para que a alteridade e o respeito mútuo sejam a pedra angular da sociedade brasileira.